A Virtualização das Relações Sociais


A AUTENTICIDADE E AS IDENTIDADES NA ERA PÓS-DIGITAL

ENTRE A MÁSCARA E A ESSÊNCIA


                                                                           Imagem criada por IA


Nota prévia 

Vivemos numa era marcada pela revolução da informação, onde o digital transformou radicalmente as nossas formas de comunicar, trabalhar, consumir e até de nos compreendermos enquanto indivíduos. A internet, as redes sociais e as tecnologias emergentes como a inteligência artificial criaram um ambiente em que a informação circula de forma instantânea e massiva, conectando pessoas ao redor do globo em segundos. O que outrora era longe, agora está ao nosso lado, e o que outrora era difícil, agora aparenta ser simples.

No entanto, essa revolução trouxe consigo desafios inéditos. Se, por um lado, o digital nos deu voz e visibilidade, por outro, também nos imergiu num mundo de representações, performances e máscaras cuidadosamente construídas. A autenticidade, era uma característica associada à verdade e à essência, mas tornou-se agora uma questão nebulosa e frequentemente questionável. Afinal, quem somos nós por trás das imagens que compartilhamos? Quem são os outros que encontramos na rede? E como podemos confiar na informação que consumimos num cenário onde tudo parece editável, manipulável e construído?

No mundo pós-digital, essas perguntas não são meramente filosóficas — elas estão no centro das nossas interações sociais e culturais. A questão da autenticidade transcende a trivialidade dos nossos perfis online e conduz-nos a reflexões profundas sobre identidade, confiança e a própria natureza da verdade numa era em que a informação é tanto ferramenta quanto armadilha.

Este, é um tema delicado, controverso, oportuno (dada a sua dimensão à escala planetária) e que no meu ponto de vista interessa aprofundar, até porque muitas das suas questões são experienciadas por cada um de nós no nosso dia-a-dia. 



O projeto "Dalí Digital"

Dada a base introdutória da nota prévia que nos remete ao contexto contemporâneo desta nossa era digital, remeto-me agora a uma breve abordagem ao enunciado deste trabalho, solicitado pelo Professor António Teixeira, e que por ser tão sugestivo, ajuda-nos a melhorar o entendimento acerca do tema.  

A deliciosa frase célebre de Salvador Dalí, "Se algum dia eu vier a morrer, o que é improvável, espero que as pessoas nos cafés digam que Dalí morreu, embora não totalmente", capta perfeitamente a essência do artista: a sua busca constante por transcender os limites e criar um mito que superasse o tempo e o espaço. Com a sua personalidade excêntrica e sua habilidade em combinar realidade e fantasia, Dalí parecia antecipar os desafios e oportunidades do mundo pós-digital.

Esta visão de "imortalidade" ganhou corpo na instalação interativa criada no Museu Dalí, em Saint Petersburgh, na Flórida. Utilizando a tecnologia de deepfake, a equipa conseguiu dar vida ao "Dalí digital", uma figura virtual que conversa com os visitantes, compartilha reflexões e até tira selfies com eles. O resultado é uma experiência imersiva que provoca não apenas fascínio, mas também levanta questões sobre a autenticidade, a identidade e as fronteiras entre o real e o artificial.



Dalí: O Artista no Mundo Pós-Digital

Dalí sempre foi mais do que um pintor: ele foi uma obra de arte viva. De personalidade excêntrica e com um percurso de vida projetado para consolidar a sua identidade pública como um enigma. Para Dalí, a distinção entre o "artista" e a "persona" era fluida — ele era, ao mesmo tempo, um criador e uma criação. Esta dicotomia é perfeita para o tema em análise.

A instalação Dalí Lives amplifica justamente esta ideia ao recriar o artista como uma presença digital. Mas!!! Esse "Dalí" é real? Ele é apenas uma simulação ou, de alguma forma, carrega a essência do verdadeiro Salvador Dalí? 

Os visitantes do museu, ao interagir com o "Dalí digital", frequentemente descrevem a experiência como surreal — uma palavra que, ironicamente, define o movimento artístico que o próprio Dalí ajudou a construir. No entanto, esse fascínio também alimenta uma panóplia de enganos tão característica do mundo pós-digital, onde as fronteiras entre o real e o virtual estão cada vez mais diluídas. Talvez Dalí, mais do que qualquer outro artista, seja o símbolo perfeito para o mundo onde a autenticidade é menos uma questão de essência e mais uma questão de perceção.

O uso de deepfakes na recriação de figuras históricas como Dalí abre uma série de questões sobre autenticidade e representatividade:

  1. Essa figura digital é autêntica? 
  2. Quem valida essa versão de Dalí? 

Essas reflexões aplicam-se também às interações sociais nas redes. Assim como o "Dalí digital", as nossas próprias presenças online são versões editadas de nós mesmos, que os outros interpretam e consomem. 

     3. Quem somos nós, afinal, nesse teatro de representações?




O mesmo tema noutros autores

Já outros autores se debruçaram sobre o tema:

Jean Baudrillard (1991) introduziu o conceito de simulacro, no qual as simulações não imitam a realidade, mas tornam-se a nova realidade. No caso do "Dalí digital", não encontramos apenas uma reprodução do artista, mas uma versão hiper-real, onde a autenticidade reside na interação e não na verdade histórica.

Walter Benjamin (1992) sugeriu que a reprodutibilidade técnica elimina a "aura" da singularidade, deslocando a autenticidade para a perceção coletiva. No mundo digital, a autenticidade deixa de estar ligada à origem e passa a depender da experiência e impacto na rede.




Problemática de análise

É interessante enumerar de forma sintética as principais dificuldades envolvidas no tema para um também breve vislumbre sobre a existência (ou não) de soluções para as suas consequências:

  • Autenticidade da Informação – a informação pode ser constantemente questionada pela dificuldade de distinguir o real do “fabricado”.
  • Ferramentas capazes de validação – existirão ferramentas disponíveis para os utilizadores validarem a veracidade da informação? Pode a informação ser previamente validada por uma entidade ou mecanismo?
  • Ética e responsabilidade tecnológica – é uma necessidade urgente que não apresenta rosto ou entidade que a assuma.
  • Consequências sociais e individuais – mais ligeiras ou mais devastadoras, sejam individualidades ou coletividades, necessitam de ser protegidas.
  • Responsabilidade coletiva – há um percurso longo a ser feito na sensibilização para a construção de uma ética digital com responsabilização simultânea, quer dos criadores quer dos utilizadores.



Que soluções?...

Dada a problemática enunciada, a capacidade de identificar e mitigar a propagação de informações manipuladas é essencial para preservar a confiança nas interações digitais e proteger a integridade das narrativas pessoais e coletivas. Desde ferramentas tecnológicas até à promoção da literacia digital, existe uma variedade de estratégias que pode ser utilizada para enfrentar este desafio.

Neste contexto, apresenta-se uma série de mecanismos que combinam educação, tecnologia e práticas colaborativas para verificar e proteger a autenticidade de conteúdos no espaço digital. Estes métodos não só ajudam a distinguir o verdadeiro do falso, mas também incentivam uma cultura de responsabilidade digital, essencial para a convivência num ambiente digital cada vez mais complexo e dinâmico.


1. LITERACIA DIGITAL E EDUCAÇÃO CRÍTICA

  • Formação em literacia digital: Capacitar utilizadores para identificar e interpretar conteúdos de forma crítica, distinguindo entre fontes confiáveis e não confiáveis.
  • Programas escolares: Introduzir a alfabetização mediática e digital como parte do currículo escolar.


2. VERIFICAÇÃO DE FACTOS

  • Ferramentas de fact-checking:
    • Utilizar plataformas para verificar a veracidade de informações. 
    • Explorar bases de dados de fact-checkers certificados pelo International Fact-Checking Network (IFCN).
  • Pesquisa inversa de imagens:
    • Ferramentas como o Google Images ou TinEye permitem identificar a origem de uma imagem e verificar se foi manipulada.

 3. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E ALGORITMOS DE DETEÇÃO

  • Ferramentas de IA para deteção de falsificações:
    • Plataformas que permitam verificar alterações em conteúdos visuais.
  • Algoritmos de deteção de desinformação:
    • Organizações para identificar padrões de disseminação de fake news.

 4. REDES DE CONFIANÇA E COLABORAÇÃO 

  • Revisão por pares:
    • Promover a validação colaborativa de conteúdos através de comunidades especializadas ou grupos de revisão.
  • Etiquetas de confiança (certificações):
    • Atribuir selos ou marcas de confiança a fontes verificadas, permitindo aos utilizadores identificar conteúdos mais confiáveis.

 5. REGULAÇÃO E SUPERVISÃO

  • Legislação:
    • Implementar regulamentações que responsabilizem plataformas e criadores de conteúdo por disseminação de desinformação.
  • Supervisão de plataformas:
    • Exigir que redes sociais implementem sistemas de deteção e sinalização de conteúdo manipulado.

 6. PRÁTICAS DE VERIFICAÇÃO PESSOAL

  • Questionar a fonte:
    • Verificar a credibilidade do autor ou da plataforma que publicou o conteúdo.
  • Consultar múltiplas fontes:
    • Comparar o mesmo facto em diferentes meios de comunicação para avaliar consistência.
  • Data e contexto:
    • Analisar a data de publicação e o contexto original de uma informação para evitar interpretações descontextualizadas.

7. PARCERIAS E CAMPANHAS DE SENSIBILIZAÇÃO

  • Campanhas públicas:
    • Sensibilizar o público para os perigos da desinformação e promover boas práticas de consumo digital.
  • Parcerias entre plataformas e organizações:
    • Colaborar com ONGs e instituições académicas para desenvolver ferramentas de validação e promover conteúdos confiáveis.

8. INCENTIVO À RESPONSABILIDADE PESSOAL

  • Autocontrole antes de partilhar:
    • Incentivar os utilizadores a verificarem informações antes de as partilharem.
  • Utilização de listas de fontes confiáveis:
    • Consultar regularmente publicações e fontes que seguem boas práticas jornalísticas e éticas.

Estes mecanismos, quando combinados, criam um ecossistema mais seguro e transparente para o consumo de conteúdos digitais, reduzindo o impacto da desinformação e das falsificações.



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Bibliografia

  • Baudrillard, J. (1991). Simulacros e Simulações. Relógio d´Água
  • Benjamim, W. (1992). A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Relógio d`Água
  • Lagoa, S. (2016). Identidade e Representação no Ciberespaço. Revista de Comunicação e linguagens, 2(1), 45-58
  • Dalí Lives – Art Meets Artificial Intelligence. (2019, março 11). [Gravação de vídeo].https://www.youtube.com/watch?v=mPtcU9VmIIE&t=1s&ab_channel=TheDal%C3%ADMuseum


Comentários

  1. A colega explora a autenticidade e a identidade na era digital, utilizando o projeto "Dalí Digital" como exemplo de como as tecnologias ou o deepfake, desafiam a nossa compreensão da realidade e da verdade. Analisa como as representações virtuais, influenciadas por autores como Baudrillard e Benjamin, alteram a nossa perceção da autenticidade, tanto nas interações sociais online como na apresentação de figuras históricas. Por fim, propõem diversas soluções para combater a desinformação, incluindo a alfabetização digital, a verificação de factos e a regulação das plataformas.
    Atentamente,
    Luz

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